A aposta que falta ao Brasil

O Brasil vive hoje uma epidemia silenciosa. Alimentada por promessas de lucro fácil e uma publicidade agressiva, a proliferação de sites de apostas — as chamadas bets — transformou o vício em jogos em um problema de saúde pública. Milhões de brasileiros, muitos deles jovens, estão se endividando, adoecendo e desestruturando suas famílias, vítimas de uma compulsão que não escolhe classe social, gênero ou escolaridade. O vício em apostas digitais já é comparável à dependência química — e, em muitos casos, ainda mais difícil de detectar e tratar.

O alerta, que antes parecia restrito a especialistas em saúde mental, agora ganha palco nacional com a instalação da CPI das Bets no Senado Federal. Os trabalhos da comissão revelam uma realidade inquietante: além das suspeitas de manipulação de resultados em campeonatos de futebol, há indícios de atuação desregulada de casas de apostas, ausência de controle efetivo sobre os usuários e uma preocupante relação promíscua entre operadores e influenciadores digitais. A convocação de grandes nomes das redes sociais para prestar esclarecimentos sobre a publicidade massiva de apostas é um reflexo claro de que o problema extrapolou os limites do entretenimento e já impacta gravemente a saúde pública e o tecido social brasileiro.

A regulamentação do setor, aprovada no fim de 2023 por meio da Lei nº 14.790, representou um avanço ao estabelecer regras para a arrecadação e fiscalização das operadoras de apostas online. Contudo, a legislação falhou em um ponto crucial: não previu nenhum mecanismo obrigatório de enfrentamento à ludopatia (vício em apostas), como já ocorre em países que há anos convivem com esse fenômeno.

O vício em apostas é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um transtorno de saúde mental, classificado como “transtorno do jogo”, definido no CID-11 como um transtorno de comportamento que envolve vícios de comportamento e descontrole de impulsos. Assim, o vício em jogos de azar trata-se de uma adicção, da mesma forma que o alcoolismo, ou a dependência de drogas.

Não há hoje, no Brasil, uma estrutura pública robusta para acolher e tratar pessoas viciadas em jogos. Não há centros especializados no SUS. Não há campanhas nacionais de prevenção. Não há políticas integradas com a educação, a assistência social ou a segurança pública. Há, sim, um número crescente de histórias de ruína: pessoas — em sua maioria homens jovens de baixa renda — que perdem tudo tentando recuperar uma aposta mal feita; famílias desfeitas; casos de suicídio. E há, por trás disso, uma estrutura que lucra com a aposta de uns à custa do desespero de muitos.

É hora de o Brasil avançar onde a lei não foi capaz. É hora de criar um Fundo Nacional de Prevenção e Tratamento da Ludopatia — uma estrutura permanente, abastecida com parte da arrecadação das próprias apostas, com destinação clara e vinculada: financiamento de clínicas especializadas em saúde mental; protocolos de atendimento no SUS; programas escolares de educação midiática; ferramentas tecnológicas de autolimitação; e a manutenção de uma rede de apoio 24 horas a dependentes e seus familiares.

Essa não é uma ideia nova. O Reino Unido, referência mundial na regulação do setor, anunciou recentemente a implantação de uma taxa estatutária obrigatória para financiar o trabalho de pesquisa, prevenção e tratamento dos danos causados pelo jogo, cobrada de todos os operadores licenciados pela Comissão de Jogos. A contribuição varia de 0,1% a 1,1% do rendimento bruto anual, conforme o segmento da empresa.

Do total arrecadado, 50% serão destinados ao NHS England (o sistema público de saúde britânico) e seus equivalentes na Escócia e no País de Gales; 30% financiarão campanhas nacionais de saúde pública e o treinamento de profissionais da linha de frente; e 20% serão direcionados ao UKRI — agência nacional de fomento à pesquisa — e à Comissão de Jogos, para desenvolver programas de investigação sobre os impactos do jogo.

Antes disso, a contribuição era voluntária — e insuficiente. Agora, com mais de 100 milhões de libras previstas por ano, o Reino Unido reconhece que o lucro com o jogo deve vir acompanhado de responsabilidade com quem adoece por causa dele.

Por que o Brasil não pode seguir o mesmo caminho? A CPI das Bets oferece ao Congresso Nacional uma oportunidade histórica: transformar escândalos e omissões em políticas públicas efetivas. A lógica é simples e justa: quem lucra com a oferta do risco deve contribuir para o tratamento do dano. Assim como existem fundos para vítimas de acidentes de trânsito ou de trabalho, deve haver um fundo para aqueles que foram fisgados por um sistema que prospera vendendo a ilusão do ganho fácil.

O Brasil já apostou demais na omissão. Agora, precisa apostar na responsabilidade.

Por Heber Gueiros – Comunicador por vocação, bancário por profissão, analista político por paixão e pesquisador da história amazônica.

Henrique Branco

Formado em Geografia, professor das redes de ensino particular e pública de Parauapebas, pós-graduado em Geografia da Amazônia e Assessoria de Comunicação. Autor de artigos e colunas em diversos jornais e sites.

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