A conta do Frankenstein

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A atual crise de energia do Brasil, que ameaça se tornar a pior de todos os tempos, surpreendeu, alertou e alarmou a opinião pública sobre o desempenho neste momento da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, a maior inteiramente nacional. A usina está gerando apenas 2,2% da sua capacidade, ou 244 megawatts (no dia 8) dos 11.233 MW da potência instalada em suas 18 turbinas. Significa que só uma das máquinas está funcionando, mesmo assim não é nem metade do que poderia produzir, ou seja, 11,2 GW da capacidade.

Nenhuma novidade. Apesar de chocante, a situação estava prevista no projeto da hidrelétrica, por um fator acima de qualquer controvérsia, produto da natureza: a vazão de águas do Xingu diminui 30 vezes entre o período de chuvas abundantes e o pico da estiagem, que acontece agora. Por isso, a energia média do ano cai dos 11,2 mil MW de potência máxima (com a qual poderia atender 40% da demanda nacional) para 440 MW firmes.

Em junho, a vazão que chegava de montante à primeira das barragens, a Pimental, era de 8.494 metros cúbicos por segundo. Essa estrutura abriga seis turbinas bulbo, de baixa potência, que não precisam de grande volume nem desnível de água para produzir continuamente. A soma da energia que geram é menor do que a potência de uma única das 18 turbinas instaladas na casa de força principal (de 550 MW), 90 quilômetros rio abaixo. Mas poderia abastecer toda a região de influência direta.

Desses 8,5 mil m3 fluentes, 4.939 m3 foram desviados para o canal de derivação, chegando por ele às tomadas de água na barragem principal, onde está a casa de força. Esse canal artificial, aberto lateralmente ao leito do rio, tem 20 quilômetros de extensão por 200 metros de largura e 20 metros de profundidade. É um dos maiores do mundo.

Sem ele, ao invés de funcionar com plena capacidade em menos da metade do ano, Belo Monte teria geração muito menor pela maior parte do ano e ficaria praticamente paralisada durante dois meses. Seria inviável economicamente (não que, a rigor, em cálculo rigoroso, tenha deixado de ser, exceto para os construtores, com lucros advindos de faturas superfaturadas e já pagas). A equação original foi refeita, mas o resultado não fecha.

O projeto original da Eletronorte exigia que a hidrelétrica contasse com um reservatório de pelo menos 1,2 mil quilômetros quadrados, já sem poder dispor de outras quatro barragens rio acima, uma das quais, Babaquara, formaria o maior lago artificial do país, 30% maior do que o de Sobradinho, na Bahia, que continua a ser o maior.

Por pressão dos que defendem argumentos ecológicos, sociais e antropológicos, o reservatório foi reduzido para 440 km2. Ainda assim, só parte do estoque de água vai para a hidrelétrica. Em junho, por exemplo, enquanto quase 5 mil m3 iam para o canal de derivação, 3.555 meram liberados para seguir pelo leito natural do rio, no trecho em que o Xingu faz uma curva grande e fechada, conhecido como a Grande Volta.

Os críticos do projeto apontavam como uma das suas falhas mais graves fazer esse trecho ficar seco, privando de água caboclos e índios que moram às margens do rio.

No último dia 8, dos 984 m3 de água que chegavam à barragem Pimental, 317 m3 foram para o canal de derivação e 672 m3 prosseguiram no curso natural do rio, conforme o compromisso da operadora do sistema, a Norte Energia. A situação é grave e pode ficar pior, mas a vazão ainda está um pouco acima do que era previsto. A estiagem do Xingu está sendo menos catastrófica do que a de outros rios represados no país.

Os remendos feitos ao longo do licenciamento ambiental e da construção da grande obra criaram uma hidrelétrica disforme, um autêntico Frankenstein, além de serem responsáveis (junto com a corrupção em escala mastodôntica, cuja apuração foi interrompida pelo assassinato da Operação Lava-Jato) pelo encarecimento brutal do custo, que passou de 19 bilhões para 42 bilhões de reais. Para se ter uma ideia do que esses ajustes significaram, basta lembrar que o concreto usado na abertura do canal de derivação equivaleu ao aplicado no canal do Panamá.

Sem que a casa de força principal pudesse ser instalada na mesma estrutura da barragem principal, por falta de volume de água e de declividade natural, como é o padrão nesse tipo de engenharia, as imensas turbinas foram construídas 90 quilômetros a jusante da barragem para poder armazenar água fora do leito do rio e aproveitar a declividade de 90 metros nesse trecho.

Todas as adaptações e recriações não eliminaram o paradoxo e a incompatibilidade entre uma mega usina de energia construída no leito de um grande rio e um reservatório minúsculo, incapaz de atender à voracidade de engolimento de água das 18 turbinas (cada uma das quais precisa de 500 mil litros de água por segundo para render o máximo), as maiores em operação no mundo. Uma baleia engolindo água em conta-gotas. Um paquiderme hidrelétrico funcionando a fio d’água.

Se os custos ecológicos, sociais e antropológicos foram reduzidos ou atenuados, o custo econômico está apresentando a sua conta, inflacionada pela temporada de seca centenária. Quem vai pagar essa fatura, os brasileiros já sabem.

Por: Lúcio Flávio Pinto – Site Amazônia Real. 

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