Crônica de uma Despedida

Morreu hoje, em Porto Alegre, aos 88 anos, o genial escritor (e muito mais que isso) Luis Fernando Veríssimo. Filho do também genial e imortal Érico Veríssimo (O Tempo e o Vento, entre outras).

Verissimo acompanhou-me em minha adolescência, rato de livros que sempre fui. Lembro-me de várias vezes PASSAR MAL de tanto rir de suas crônicas, sempre inteligentes, espirituosas, baseadas em situações do cotidiano. Leitura obrigatória onde estudei, a série “Para Gostar de Ler”, foi sublime e Veríssimo estava lá também. Hoje em dia, em um mundo avesso à leitura, apegado ao que é instantâneo e que não nos desafie a pensar, Veríssimo era um farol. Fará falta, muita falta.

Despeço-me com uma crônica sua que li na quinta série (ou quarta, não recordo).

Emergência

É fácil identificar o passageiro de primeira viagem. É o que já entra no avião desconfiado. O cumprimento da aeromoça, na porta do avião, já é um desafio para a sua compreensão.

– Bom-dia…

– Como assim?

Ele faz questão de sentar-se num banco de corredor, perto da porta, para ser o primeiro a sair no caso de alguma coisa dar errado. Tem dificuldade com o cinto de segurança. Não consegue atá-lo. Confidencia para o passageiro ao seu lado:

— Não encontro o buraquinho. Não tem buraquinho?

Acaba esquecendo a fivela e dando um nó no cinto. Comenta, com um falso riso descontraído: “Até aqui, tudo bem.” O passageiro ao lado explica que o avião ainda está parado, mas ele não ouve. A aeromoça vem lhe oferecer um jornal, mas ele recusa.

— Obrigado. Não bebo.

Quando o avião começa a correr pela pista antes de levantar voo, ele é aquele com os olhos arregalados e a expressão de Santa Mãe do Céu! no rosto. Com o avião no ar, dá uma espiada pela janela e se arrepende. É a última espiada que dará pela janela. Mas o pior está por vir. De repente, ele ouve uma misteriosa voz descarnada. Olha para todos os lados para descobrir de onde sai a voz.

“Senhores passageiros, sua atenção, por favor. A seguir, nosso pessoal de bordo fará uma demonstração de rotina do sistema de segurança deste aparelho. Há saídas de emergência na frente, nos dois lados e atrás.”

— Emergência? Que emergência? Quando eu comprei a passagem ninguém falou nada em emergência. Olha, o meu é sem emergência!

Uma das aeromoças, de pé ao seu lado, tenta acalmá-lo.

– Isto é apenas rotina, cavalheiro.

– Odeio a rotina. Aposto que você diz isso para todos. Ai, meu santo.

“No caso de despressurização da cabina, máscaras de oxigênio cairão automaticamente de seus compartimentos.”

— Que história é essa? Que despressurização? Que cabina?

“Puxe a máscara em sua direção. Isto acionará o suprimento de oxigênio. Coloque a máscara sobre o rosto e respire normalmente.”

— Respirar normalmente?! A cabina despressurizada, máscaras de oxigênio caindo sobre nossas cabeças — e ele quer que a gente respire normalmente.

“Em caso de pouso forçado na água…”

— O quê?!”

“… os assentos de suas cadeiras são flutuantes e podem ser levados para fora do aparelho e…”

— Essa não! Bancos flutuantes, não! Tudo, menos bancos flutuantes!

– Calma, cavalheiro.

– Eu desisto! Parem este troço que eu vou descer. Onde é a cordinha? Parem!

– Cavalheiro, por favor. Fique calmo.

– Eu estou calmo. Calmíssimo. Você é que está nervosa e, não sei por que, está tentando arrancar as minhas mãos do pescoço deste cavalheiro ao meu lado. Que, aliás, também parece consternado e levemente azul.

– Calma! Isso. Pronto. Fique tranquilo. Não vai acontecer nada.

– Só não quero mais ouvir falar em banco flutuante.

– Certo. Ninguém mais vai falar em banco flutuante.

Ele se vira para o passageiro ao lado, que tenta desesperadamente recuperar a respiração, e pede desculpas. Perdeu a cabeça.

— É que banco flutuante é demais. Imagine só. Todo mundo flutuando sentado. Fazendo sala no meio do oceano Atlântico!

A aeromoça diz que vai lhe trazer um calmante e aí mesmo é que ele dá um pulo:

— Calmante, por quê? O que é que está acontecendo? Vocês estão me escondendo alguma coisa!

Finalmente, a muito custo, conseguem acalmá-lo. Ele fica rígido na cadeira. Recusa tudo que lhe é oferecido. Não quer o almoço. Pergunta se pode receber a sua comida em dinheiro. Deixa cair a cabeça para trás e tenta dormir. Mas, a cada sacudida do avião, abre os olhos e fica cuidando a portinha do compartimento sobre sua cabeça, de onde, a qualquer momento, pode pular uma máscara de oxigênio e matá-lo do coração. De repente, outra voz. Desta vez é a do comandante.

— Senhores passageiros, aqui fala o comandante Araújo. Neste momento, à nossa direita, podemos ver a cidade de…

Ele pula outra vez da cadeira e grita para a cabina do piloto:

— Olha para a frente, Araújo! Olha para a frente!

VERISSIMO, Luis Fernando. “Emergência” em “Para Gostar de Ler”. São Paulo: Ática, 1982. v. 7. p. 52-4.

Por Vicente Reis

Imagem: reprodução 

Vicente Reis

“cogito, ergo sum.”

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