Onde estão os filhos que obedeciam aos pais, que respeitavam aos mais velhos? Que cumpriam suas obrigações, que alcançavam notas para passar de ano sem precisar barganhar o presente de natal? Onde estão os filhos cujo “NÃO” de um de seus pais ou de qualquer terceiro não soava como a mais grave das humilhações?
Quem respondeu que estão no passado distante das histórias de nossos avós respondeu corretamente. Eles também estão nas histórias de mães que não trabalhavam fora de casa, assim como na fala de pais, cuja palavra funcionava como a Lei das leis.
É sim, pessoal. Somente os escritos ou falas anciãs poderão nos aproximar dessa realidade distante.
Hoje, o que temos são pais e adultos acuados pela culpa que carregam diante de sua falta de tempo com os pequenos. Pais, repetidamente, se flagram recuando “NÃOS” em prol de “SIMs” totalmente sem sentido, disfuncionais no processo de amadurecimento de seus filhos. São “SIMs” nocivos que funcionam como atalhos para as soluções de um choro ou de uma das diversas birras que sua criança comete.
Já estamos neste processo de construção de adultos mal criados há algumas décadas. Mulheres e homens destreinados para decepções; pessoas que deveriam falar naturalmente sobre sentimentos e ouvir com sabedoria opiniões divergentes das suas foram, provavelmente, crianças que não foram expostos à audição do “NÃO”.
Adultos que normalmente proferem a fala de que “são assim mesmo e que quem OS quiserem que os aceite”; aqueles que são incapazes de conceber uma segunda resposta para uma situação, diferente da que propôs. Estamos falando dessa manada de adultos do presente, cujo treino de limites foi negligenciado pelos Adultos da Lei de sua época e que resolveram usar o tempo que tinham com as crianças para criar a falsa realidade de que elas eram os Pequenos Donos do Mundo.
Agora é a hora da colheita, mas nada se encerra por aqui. Os adultos que um dia foram os “Pequenos Donos do Mundo”, hoje apresentam a mesma proposta a seus pequenos amados. E ainda temos os novos produtores de adultos mal criados; são aqueles que vêm de uma vida de privações sociais e que atualmente “subiram na vida” ou aqueles que simplesmente se sentem maus pais porque trabalham por mais tempo do que ficam com seus filhos.
Mas, a suposta falta de tempo é algo que só tende a se asseverar, ao passo em que o estilo de vida moderno retirou os adultos de casa e os encaminhou para trabalhar fora, já que se faz necessária a manutenção do comportamento de consumo a que fomos expostos (e que nos caiu muito bem). Viver “bem” custa caro não é?
Menos tempo; mais culpas.
Mais culpas; menos “NÃOS”.
Mais “SIMs”; menos adultos maduros.
Menos famílias saudáveis; menos crianças tolerantes às frustrações; menos adultos que saibam educar novos adultos.
Em minha experiência clínica isto se faz cada vez mais evidente. Certo dia desta semana precisei me deparar com algo assustador. Fui exposta à primeira grande crítica ao meu trabalho em doze anos (refiro-me à clínica. Nas organizações, já sofri críticas severas atuando em Gestão de Pessoas, tendo que responder se as técnicas de avaliação de perfil e seleção de pessoal eram realmente justas ou se estava selecionando “cartas marcadas”. Doíam, mas minha integridade me fez forte para me colocar e minha organização com os anexos de minhas avaliações me permitiram comprovar a integridade das “minhas escolhas”).
Mas, esta semana tive a avó de um de meus pacientes autistas queixando-se de mim em minha coordenação. Sua fala clara pedia que substituíssem a terapeuta de seu neto. Segundo a mesma (avó), seu pequeno foi levado a esperar muito antes de ser atendido e o mesmo não gosta de aguardar sua vez. Logo fica estressado quando vê que outros são atendidos e ele não. Devo trazer à luz do texto que meu paciente anterior (reconhecido no CID 10 – F33.0 que sinaliza Transtorno Depressivo Recorrente, episódio atual leve) trazia demandas para a sessão que não nos permitiu concluir as falas dentro do tempo do relógio, apenas no tempo das lágrimas do paciente. Isto foi explicado aos avós do menino que não sabia esperar, mas foram exatamente os adultos que manifestaram intolerância.
Diante do destempero dos acompanhantes da criança perguntei se preferiam não realizar o atendimento naquele dia, já que julgavam que a criança estava de humor irrecuperável dado o tamanho da espera. Muito descontentes afirmaram que pretendiam sim manter o atendimento. Entramos para a sala então. Na sessão ingressou a mãe biológica (os avós ficaram fora e avó foi realizar a reclamação). Vimos na sessão que a criança, em seu segundo atendimento, tem seus aspectos cognitivos muito preservados e que seu CID 10 – F84.0 (Autismo Infantil) é leve e que o menino é seguramente muito funcional. Delimitei suas interações com a apresentação de limites, o que lhe fez chorar em alguns momentos. A mãe informou então que a criança normalmente chora na companhia dos avós e que atende bem quando os referidos não estão presentes. Lembro que na recepção do Centro Especializado de Reabilitação – CER (onde sirvo), antes de entrar para o atendimento, a criança parou de chorar e bater as pernas quando viu um carrinho que compõe os recursos do centro. Sua mãe o ordenou que deixasse o carrinho e o mesmo chorou ainda mais. Ao entrar em meu consultório, sem os avós, brincou com carrinhos, deixou-os no final da sessão e tudo se encerrou a contento.
Alguns desconfiaram, mas agora irei traduzir a situação objetivamente. Os avós da criança que mencionei aqui existem; a queixa foi real e o que eu senti também foi muito real. Senti pena da criança; senti certa raiva dos avós; senti tristeza por tudo.
A criança está num caminho tortuoso. E não poderei ajudar em mais nada, já que ao solicitarem minha troca como terapeuta, atacaram minha condição humana, machucando o que todo mundo conhece como orgulho. Minha coordenação procurou explicar para a avó que por mais que trabalhemos com horário marcado (melhor que atendimento particular) algumas vezes não se consegue encerrar a sessão anterior a tempo de sermos pontuais para a seguinte. As dores humanas nunca são britânicas e não existe um aplicativo para isso ainda. Quando minha coordenação me trouxe a situação, quase não a permiti continuar (a mesma ainda me informou que argumentou com a avó que eu seria uma das melhores para resultados infantis e que o neto dela só teria a perder. Isto nem soou como elogio para mim naquele caso). Mas, aí eu a interrompi dizendo: entrego o caso. Não quero precisar dar feedbacks negativos a uma família que me rejeita; meus resultados não serão alcançados e não pretendo me expor a isto.
Fiz este relato com duas intenções: uma com o intuito de me permitir o desabafo, a outra, mas não menos importante, para levantar uma reflexão. Adultos, curem-se! Frustrem-se e frustrem suas crianças. Usem o “NÃO” com sentido. Livrem-se de “SIMs” covardes. Chorem. Sejam pais que educam.
Vamos nos livrar da condição de fracasso em que nos inserimos.