A fome flagrante

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É como muita tristeza que se acompanha o que está acontecendo no Brasil. A fome voltou à realidade brasileira com toda a força, infelizmente. Ela não só está visível nas ruas, como cada vez mais surgem indicadores mostrando que essa chaga, em vias de ser superada anos atrás, retornou à centralidade dos problemas do país. Mais da metade da população brasileira sofre com algum grau de insegurança alimentar e pelo menos 15% convive com a falta diária e constante de ter o que comer. Os números constam do levantamento mais recente até o momento sobre o tema, no relatório “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil”.

Não é sem razão, portanto, que o assunto voltou a pautar o noticiário, os discursos políticos e a atuação da sociedade civil. “Quem tem fome tem pressa”, dizia a célebre frase do sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho (1935-1997).

É igualmente triste constatar que, ao mesmo tempo em que a fome cresce, pouco se discute as razões de o país ter mergulhado nesta situação. Para quem não acompanha os indicadores de segurança alimentar e nutricional, a abordagem que tem sido reservada ao tema sugere que se trata de um problema conjuntural, ligado aos desdobramentos da pandemia do coronavírus. Essa, no entanto, é uma leitura reducionista. É claro que o tripé vírus-negacionismo-desemprego tem a sua parcela de culpa. Mas não é o único fator responsável pela situação nem é, certamente, o central.

O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e sua desastrada política econômica, que sob as rédeas do ministro da Economia, Paulo Guedes, colecionam dados ruins, que só fazem piorar a situação social dos brasileiros. O relatório mais recente da própria A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) apontou que 23,5% da população brasileira, entre 2018 e 2020, deixou de comer por falta de dinheiro ou precisou reduzir a quantidade e qualidade dos alimentos ingeridos. Os resultados evidenciam que, em 2020, a fome no Brasil retornou aos patamares de 2004.

Quem vos escreve é além de blogueiro, um professor de Geografia. Na faculdade estudamos uma disciplina que tratava do tema deste artigo. Sim existe a Geografia da Fome, que tem o seu maior expoente Josué de Castro, que tanto escreveu sobre o tema. Castro caracterizou seu pensamento por romper com algumas falsas convicções que imperavam em seu período (e que ainda se fazem presentes nos dias atuais) de que a fome e a miséria do mundo eram resultantes do excesso populacional e da escassez de recursos naturais.

Em suas obras, provou que a questão da fome não se tratava do quantitativo de alimentos ou do número de habitantes, mas sim da má distribuição das riquezas, concentradas cada vez mais nas mãos de menos pessoas. Por isso, acreditava que a problemática da fome não seria resolvida com a ampliação da produção de alimentos, mas com a distribuição não só dos recursos, como também da terra para os trabalhadores nela produzirem, tornando-se um ferrenho defensor da reforma agrária.

A fome é, infelizmente, flagrante. Está nas esquinas, nas ruas. Muitos passam por grave crise alimentar. Acompanhamos registros de pessoas catando ossos, o que era antes descartado. A fome no Brasil avança e atinge, em dois anos, mais nove milhões de pessoas. O levantamento mais recente da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) indica que no total 19,1 milhões de cidadãos se enquadram neste perfil, ou 9% da população brasileira. Um cenário social  catastrófico.

A fome avança e o governo Bolsonaro finge que ela não existe. Não há uma política direta sobre o problema. Depois de tantos avanços, regredimos. A fome mata!

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