Desde a idade clássica, o sofrimento psíquico, os traumas físicos e mentais em conjunto com as repercussões comportamentais na vida e na constituição das personalidades das pessoas, as condições de impedimento e de restrições traduzidas como doenças ou transtornos de caráter mental/cerebral, têm sido objetos de espanto e estudo pelos acadêmicos da humanidade. No decorrer da idade média, testemunhamos hoje ao olhar para trás e com certo horror, as condições desde sempre históricas de como eram tratadas grande parte das pessoas que sofriam “dos problemas da mente”, consideradas por séculos como “loucos, insanos, doentes mentais, a loucura tida como possessão demoníaca”. Os hospícios medievais assemelhavam-se a depósitos de gente indesejada, torturada e maltratada, onde as condições usuais de miséria e pobreza intensificavam ainda mais o sofrimento das pessoas, abreviando suas existências em uma vida de maus tratos e privações.
A renascença e o decorrer da idade moderna – e mesmo início da contemporânea – trouxe a luz da ciência com um avanço indescritível da medicina, no diagnóstico e tratamento medicamentoso das doenças, dos conhecimentos de anatomia e de práticas profiláticas em geral. Mas o trato e a pesquisa dos transtornos já ditos então “psiquiátricos” pareciam seguir sempre um passo atrás. Talvez o próprio medo culturalmente disseminado – e de certa forma compartilhado coletivamente – “da loucura e do enlouquecer” em uma sociedade cada vez mais industrial, capitalista, informacional, competitiva e consumista, tenha contribuído para o lento progresso dos avanços no tratamento do sofrimento psíquico e das condições mentais/ cerebrais impeditivas da cognição saudável e do pleno trato fisiológico – que aos poucos a nomenclatura classificaria como “doenças mentais, transtornos mentais ou psiquiátricos”.
Dentre muitos grandes nomes entre cientistas e estudiosos que se debruçaram sobre o tema, destacam-se três nomes no cenário internacional: o médico francês Philippe Pinel (1745 – 1826), o médico austríaco Sigmund Freud (1856 – 1939) e o italiano Franco Basaglia (1924 – 1980). O primeiro, considerado “pai” da psiquiatria moderna, foi revolucionário ao libertar “os loucos e as loucas das correntes, que nos hospícios e prisões viviam em masmorras úmidas, junto a criminosos em geral” e oferecer a estes um tratamento médico em clínicas hospitalares que passaram a ser adaptadas às Instituições. Foi pioneiro ainda na descrição e no tratamento dos diversos quadros de transtornos mentais/cerebrais e psicológicos. O segundo, conhecido como “pai” da psicanálise – e talvez mais importante, um dos principais criadores e disseminador da prática da psicoterapia – revolucionou a forma como se ouvia e percebia os pacientes, criando uma metodologia de escuta e intervenção, que através da investigação psicológica da vida pregressa da pessoa, possibilitava a promoção de entendimento, esclarecimento, auto – conhecimento, a possibilidade de ajustes sociais e melhora nos contextos comportamentais em geral das pessoas. Quanto ao terceiro, trabalhou como médico e psiquiatra atuante na Itália e desenvolveu um movimento que ficou conhecido como “psiquiatria democrática” – método revolucionário para a época, em especial dentro das instituições psiquiátricas, que tirava o “foco” do olhar clínico profissional na doença e o transferia para a pessoa, com os detalhes de sua vida colocados no centro do debate, das intervenções e dos tratamentos.
Ainda assim, ao final do século XIX e no decorrer do século XX, não foram deixadas de todo para trás, as práticas e hábitos herdados de um longo passado de ignorância, incompreensão e mesmo descaso com o estudo e com o trato dos transtornos psiquiátricos e com aqueles que destes padecem. Com espanto revisamos o sofrimento dos internos nos hospícios e manicômios – às vezes chamados de hospitais psiquiátricos – com práticas hoje questionáveis e até abomináveis, como eletrochoque e lobotomia. Foi apenas a partir da metade final do século que se passou, que os estudiosos e profissionais da área passaram de forma mais consistente a se questionar e defender a construção de uma reforma, um novo modelo psiquiátrico, multilateral e multiprofissional, com características mais comunitárias e humanizadas, que serviria como base e modelo para as práticas e políticas públicas futuras.
Desta forma, a reforma psiquiátrica brasileira está inserida no contexto global da luta pela causa “anti – manicomial” e encontra-se em pleno andamento. Podemos citar momentos importantes, como o surgimento em 1978 do MTSM – Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – um movimento plural que passa a questionar e denunciar “a violência nos manicômios, a mercantilização da loucura, além de uma crítica ao saber psiquiátrico pré-estabelecido e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais”. Destaca-se também a atuação da Psiquiatra alagoana Nise da Silveira, pioneira no desenvolvimento da terapia ocupacional com os pacientes – com as manifestações artísticas como maior expressão – e totalmente avessa aos tratamentos agressivos da época, como eletrochoques, isolamentos, lobotomias e camisas de força. Defendeu incansavelmente a causa anti – manicomial justamente enquanto trabalhava no antigo Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro.
O primeiro CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – do Brasil surge em 1987, na cidade de São Paulo. A promulgação da lei 10.216, de 06 de abril de 2001 – “que dispõe sobre os direitos e proteções às pessoas acometidas com transtornos mentais” ajuda a orientar e fomentar a implantação do novo modelo de intervenção do poder público na área – em especial com as construções de CAPS. Os CAPS, inclusive, a partir de então se tornariam estruturas importantíssimas do novo modelo de intervenção e tratamento, amparados nos conceitos científicos mais atuais, que não foca “o olhar” apenas na doença, mas também no desenvolvimento da pessoa. Em conjunção com as famílias, com as comunidades e com a atuação do Estado, busca – se não apenas o tratamento e a lida com as pessoas que manifestam transtornos psiquiátricos severos ou persistentes, mas através do restabelecimento de funções físicas e cognitivas mínimas, a possibilidade da retomada de uma vida produtiva, ajustada e inclusiva.
Muito ainda há de ser empreendido em direção à construção e estabelecimento de um modelo próximo ao ideal consensual. A proliferação dos CAPS pelo território do País, a redução progressiva dos leitos psiquiátricos para internação, a diminuição consistente das necessidades de internação, o fim dos “hospícios tradicionais”, os investimentos públicos cada vez maiores em serviços e equipamentos que fortalecem as práticas comunitárias e familiares, são iniciativas positivas que conduzem as atuações dos profissionais de saúde da área, visando sempre promover o aumento da qualidade de serviço e de melhora, para os assistidos e para seus familiares.
Sylvio Daniel Amaral Farias – jornalista e psicólogo
REFERÊNCIAS
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf
http://hospitaldocoracao.com.br/wp-content/uploads/2016/01/PHILLIPE-PINEL.pdf
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm