Cony: a minha droga

Conheci Carlos Heitor Cony em 2003, quando comecei a ler textos de opinião pelo computador. Sem muitas referências e com a gana de conhecimento a todo custo, consumia tudo que era escrito e opinativo na minha frente. A busca desenfreada por informação, sobretudo, a de aspecto político era uma forma de compensar o atraso e descaso com os anos de estudos anteriores.

Nessas garimpagens dentro do infindável mundo virtual, encontrei dentro do site UOL, conjugado com a Folha on Line, a seção de colunistas. Ali, fui clicando em cada aba e conhecendo o perfil de cada um que assinava aquela publicação. Dentre as opções logo me identificaria com o Cony. Sem ter o domínio técnico das variações literárias ou gêneros textuais fui lendo-os. Sem perceber estava em uma overdose de Cony.

Na época trabalhava como auxiliar de Fiel (cargo correspondente a um auxiliar administrativo) em uma empresa de navegação da capital paraense. Entre as obrigações e responsabilidades do trabalho, especialmente no intervalo do almoço, corria para a Folha On Line, e obviamente para a minha droga: Cony. O seu perfil de abordagem, entre crônicas cotidianas e artigos me chamavam atenção. Como escrever assim, de forma tão direta, leve, interessante? Era a indagação que mais me fazia.

A sua irregularidade de postagens era outro ponto que me chamava atenção positivamente. Geralmente um colunista escreve em período temporal determinado: diariamente, a cada dois dias, semanalmente, quinzenalmente, etc. Cony fugia a essa padronização. E isso me deixava enlouquecido, pois não tinha computador em casa e nem sempre podia ter acesso no trabalho. Quando entrava em sua coluna, às vezes… Quase sempre, tinham dois a três textos publicados. Ele pausava as publicações em até uma semana. Em outro momento as suas publicações eram sucessivas, frenéticas, algo totalmente irregular, sem controle. Aí eu começava a desenvolver outra habilidade: a leitura dinâmica.

E assim foi pelos anos seguintes, até me curar, me reabilitar, me desintoxicar dele e partir para outras drogas. Como dizem: “a primeira a gente nunca esquece”, até porque ela é a abertura para outras. Depois o fui usando menos, menos, até chegar ao nível de leituras periódicas, aquelas que dependiam do título para que você prosseguisse na leitura.

Me curei de Cony. Mas enquanto estive entorpecido por suas crônicas, pude ir me nutrindo do interesse de escrever, produzir textos, refletir e provocar através dos dedos. Os blogs que já tive foram consequências disso. Obrigado, Cony.

Reproduzo na íntegra, texto escrito em março de 2017 em sua coluna na Folha, e que reflete bem o momento:

Se eu morrer amanhã

Se eu morrer amanhã, não levarei saudade de Donald Trump. Também não levarei saudade da operação Lava Jato nem do mensalão. Não levarei saudade dos programas do Ratinho, do Chaves, do Big Brother em geral. Não levarei nenhuma saudade do governador Pezão e do porteiro do meu prédio.

Se eu morresse amanhã, não levaria saudade do rock, dos sambas-enredo do Carnaval, daquela águia da Portela nem dos discursos do Senado e da Câmara, incluindo principalmente as assembleias estaduais e a Câmara dos Vereadores.

Se eu morrer amanhã, não levarei saudades dos buracos da rua Voluntários da Pátria, das enchentes do Catumbi, dos técnicos do Fluminense, dos juízes de futebol, da Xuxa e das piadas póstumas do Chico Anysio. Não levarei saudade do Imposto de Renda e demais impostos, e muito menos levarei saudade das multas do Detran.

Não levarei saudade da vizinha que canta durante o dia uma ária de Puccini (“oh mio bambino caro”) que ela ouviu num filme do Woody Allen. Aliás, também não levarei saudade do rapaz que mora ao meu lado e está aprendendo a tocar bateria.

Não levarei saudade das cotações da Bolsa, das taxas de inflação e das dívidas externas do Brasil. Não levarei saudade dos pasteis das feiras livres nem das próprias feiras livres, também não levarei saudade dos blocos de índio que geralmente fedem mais do que os verdadeiros índios.

Não levarei saudade dos lugares em que não posso fumar, das lanchas de Paquetá e dos remédios feitos com óleo de fígado de bacalhau. Não terei saudades das mulheres que usam silicone e blusas compradas no Saara.

Enfim, não levarei saudade de mim mesmo, dos meus fracassos e dívidas. Finalmente, não terei saudades dos milagres dos pastores evangélicos nem de um mundo que cada vez fica mais imundo.

Henrique Branco

Formado em Geografia, com diversas pós-graduações. Cursando Jornalismo.

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