O Brasil já se manifestou e derrotou o parlamentarismo em duas oportunidades: 1963 e 1993. Manteve o princípio constitucional histórico de separação dos poderes, com o papel do Legislativo de fiscalizar e legislar, cabendo ao Executivo governar, arrecadar e executar os orçamentos públicos.
A tragédia de 2018/2022, com um psicopata inapetente para governar, impôs ao povo brasileiro um fenômeno esquisito, malandro e anacrônico, de execução de parte do orçamento público federal por membros do Poder Legislativo, através de emendas, muitas delas secretas, alugadas ou vendidas, tudo arrumado por um grupo alheio ao Brasil real, sobrepujando-se interesses familiares, empresariais e corporativos.
Com habilidade e sabedoria, o presidente Lula atravessou o primeiro ano de governo retomando o papel do Poder Executivo, com a prevalência das políticas públicas nacionais, em substituição ao compadrio e à apropriação do Estado por um grupo de deputados e senadores.
A mercê dessa habilidade e contando com a experiência dos seus líderes no Congresso, as vitórias de Lula apareceram. Uma delas, inimaginável, buscada em décadas sem sucesso, coroou o esforço gigantesco do governo. O novo desafio será a regulamentação dessa reforma tributária, finalmente aprovada, com os projetos de leis complementares que definirão as alíquotas do novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA), os itens da nova cesta básica isenta de tributos e o funcionamento do cashback na conta de luz dos mais pobre.
Esses feitos do novo governo Lula incomodam. A cultura produzida em quatro anos de desmonte ainda povoa a memória do patrimonialismo parlamentar. A farra do orçamento secreto foi deslocada para as comissões temáticas do Congresso.
O discurso produzido nos canaviais de Alagoas, na reabertura dos trabalhos legislativos de 2024, nessa última segunda-feira pré-carnavalesca, mostra-nos um Arthur Lira sonhando com novo assalto ao orçamento, extrapolando e estimulando a naturalização do deputado-gestor do orçamento federal.
Suas ameaças ao governo, na figura do ministro Alexandre Padilha, são apenas o teste de cedência ou não do governo Lula aos seus caprichos insaciáveis. Aliás, qualquer um no lugar do paciente e educado ministro Padilha sofreria as mesmas pressões e chantagens, receberia a mesma deselegância e os mesmos impropérios. Ricardo Fiuza, um dos autores da “engenharia política” chamada Centrão, não imaginava tamanho progresso na era Lira. Contentava-se com a oração de São Francisco de Assis (“é dando que se recebe”).
Calendário de execução de emendas parlamentares é responsabilidade de quem governa. Parlamentares não têm entre suas atribuições constitucionais responsabilidade com o dia a dia da gestão pública, prazos de receitas e despesas.
Lira, pretensioso, pensa ser o autor e executor do orçamento, presidente da Câmara e presidente da República. Não é possível. A regra constitucional é clara. E ele sabe disso. Mas sabe também que Lula não é um neófito tresloucado que um certo grupo insaciável manipulou ao longo de quatro anos, em troca de motociatas, deslumbramento com o poder e cartão corporativo ilimitado. Tempos idos!
O Congresso Nacional não executa orçamento. Eleições municipais sempre ocorreram, com a execução orçamentária de investimentos até o mês de junho, incluindo as emendas parlamentares empenhadas. Em 2024, mais de R$ 53 bilhões foram aprovados, distribuídos em 7,9 mil emendas.
O busílis escondido nessa queda de braço é o veto de R$ 5,6 bilhões nas emendas de comissões, sucedâneas das chamadas emendas secretas. Ainda assim, as comissões ficaram com R$ 11 bilhões, montante muito superior aos valores do ano passado, em torno de R$ 7,5 bilhões.
A gulodice de Lira faz supor que o Centrão perdeu tudo com o minúsculo veto de Lula, cujo sentido é garantir a viabilização do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), coisa estranha a esse novo parlamentarismo tupiniquim.
As emendas individuais, intactas, orçadas em R$ 25 bilhões, e as emendas de bancada com valor total de R$ 11,3 bilhões, não sofreram qualquer veto do presidente Lula. Que ainda sancionou sem vetos, os R$ 4,9 bilhões do fundo eleitoral, (mesmo valor utilizado nas eleições nacionais de 2022), avançando na proposta original, que era de menos de R$ 1 bilhão!
O orçamento de 2024 a ser executado é de aproximadamente R$ 5,5 trilhões. O Bolsa Família terá R$ 170 bilhões. A educação, R$ 180 bilhões. Saúde, R$ 231 bilhões. Meio Ambiente e mudança do clima, R$ 3,72 bilhões. Defesa, R$ 126 bilhões…
Lira olha esses números e sonha em executar o orçamento brasileiro, retirando do PAC suas “emendas de comissão”.
Com a Constituição Federal nas mãos e a boa relação construída com o STF a partir do golpe frustrado de 8 de janeiro de 2023, Lula vai jogando o jogo que conhece muito bem, melhor que Gerson e Tostão. Ainda que o Centrão derrube o veto da “emenda pix” — antiga emenda de relator proibida pela Suprema Corte —, o orçamento da União continuará sendo de todos os brasileiros, executado pelo Poder Executivo, eleito para esse fim.
Artigo de Joelson Meira – Congresso Em foco.
Imagem: reprodução Internet.